terça-feira, 11 de dezembro de 2018

ELEMENTOS INTRODUTÓRIOS DA INICIAÇÃO



Por Gary L. Stewart, Imperator da CR+C
A iniciação é o aspecto e a causa essencial da elevação da consciência às sublimes realidades objetivas dos estados superiores — àquele estado transcendente de percepção onde o Ser Verdadeiro funciona de acordo com o grau de seu despertamento e em um plano de existência que permite o serviço sem restrições. Ela opera em um dos diversos planos, cada um com sua própria realidade objetiva, sua própria criação, que pode ou não ter paralelo com aquelas realidades objetivas do mundo com o qual estamos acostumados. Nosso ponto individual de trabalho depende somente do grau de nosso despertamento e do nível particular de realidade objetiva no qual fomos iniciados.
Até certo ponto, a natureza de nossas iniciações é escolhida por nós mesmos, embora, talvez, não somente como resultado de uma escolha intelectual. É nossa sinceridade interior, nossa atitude e nossa pureza de motivo que determinam em que nível funcionamos. É fácil perceber que nosso intelecto não pode tomar essas decisões por si só. Mais exatamente, ele serve meramente para nos auxiliar a nos harmonizarmos com o Deus Interior de onde se origina nosso desabrochar para atingirmos um ponto de verdadeira iniciação de verdadeira escolha.
A Confraternidade da Rosa+Cruz é uma ordem iniciática e ritualística em que o Caminho que escolhemos utiliza a técnica esotérica iniciática tradicional que se desenvolveu a partir do sistema arcano que foi compreendido no alvorecer da consciência. O sistema Tradicional flui de uma corrente sem começo ou fim. Essa corrente não foi criada; está sempre presente. Nosso processo de iniciação retira o iniciado de sua realidade objetiva individual e abre um portal para o estudante através do qual cada iniciado deve voluntariamente passar por seu próprio desejo. A manifestação exotérica da iniciação não conferirá a esse iniciado nada além de uma escolha. E tal escolha deve ser feita pelo iniciado a partir do coração. Uma vez que a escolha é feita e o iniciado verdadeiramente começa a fluir com a corrente disponível, a iniciação cumpriu seu propósito. Suas ferramentas não são mais necessárias e o iniciado deve então se preparar para a próxima iniciação, em sintonia com a corrente escolhida.
O propósito deste artigo não é o de discutir nossos símbolos ou rituais, ou aquilo que eles devem transmitir. Mais exatamente, este artigo é uma introdução aos elementos da iniciação na qual as ferramentas do ritual físico tradicional e o mundo psíquico podem ser utilizados para despertar nosso verdadeiro propósito de espiritualidade.
Quando dizemos que a CR+C é uma ordem iniciática e ritualística, estamos dizendo que através de nossa metodologia reconhecemos o Caminho sempre presente que é estruturado em um sistema hierárquico. Não me refiro a uma hierarquia exotérica de oficiais que lideram a Ordem e guiam seu propósito, mas sim a uma hierarquia esotérica que transcende a personalidade. Se um membro da Ordem ou um de seus oficiais é ou não parte dessa hierarquia é irrelevante. Na verdade, todo o conceito da idéia popular de mestres ou personalidades iluminadas nada mais faz que depreciar o trabalho que eles idealizam. Por quê? Porque tais mestres nada mais são que a criação e personificação da compreensão limitada das pessoas que os criam.
Na assim chamada “Nova Era”, que é referência para nossos tempos da mesma forma que períodos anteriores foram conhecidos como “A Reforma” e a “Era do Iluminismo”, encontramos muitos que alegam ser canais exclusivos das personalidades de mestres que, pela primeira vez na história da humanidade, estão se revelando a nós com o propósito de salvação. Como isso difere das hostes de santos medievais trazidas a nós pela igreja? Ou dos deuses dos gregos e de outros povos? Como pode a humanidade hoje ser tão arrogante a ponto de pensar que, pela primeira vez na história, seremos salvos pela interação pessoal de mestres, deuses ou santos?
Não estamos em uma “Nova Era”, da mesma forma que nunca realmente estivemos em qualquer outra “era”. Estamos simplesmente em uma era que sempre esteve presente. Como em séculos passados, as pessoas estão agora se voltando com interesse renovado para ideais mais elevados, mas a maioria delas não está colocando sua fé em uma personificação para guiá-las para a iluminação.
Eis uma cilada que só a iniciação pode ajudar a evitar. É verdade que hoje muitas pessoas estão sinceramente canalizando mestres. Mas esses mestres não são da hierarquia esotérica. O que está sendo canalizado nada mais é que as crenças criadas personificadas pela consciência coletiva daqueles que acreditam. Aqueles que são proficientes em viajar nos reinos astral ou psíquico comprovarão o fato de que podem se encontrar face a face com o deus Apolo ou com o Mestre Kuthumi. Mas só um iniciado pode verdadeiramente diferenciar entre aquilo que é real e aquilo que é uma manifestação criada. Uma manifestação criada possui vida, possui personalidade, mas não possui nenhuma substância espiritual. E tocar a verdadeira hierarquia esotérica requer o reconhecimento dessa substância e a ascensão àquele nível de manifestação.
O plano astral não é tão diferente do plano físico, exceto que a matéria como a compreendemos não está presente. Conseqüentemente, nossa percepção dentro do mundo astral vê uma condição de natureza mais etérea, que é muito mais fácil de criar em forma visível. Muito daquilo que é de natureza positiva, quando visto nesse reino astral, são pessoas materializadas de uma maneira que não pode ser feita no plano físico. Devemos também lutar com traços negativos de medo e ódio que também se manifestam nesse reino. Juntos, eles formam um mundo paralelo que ainda contém engano e ilusão. Muitas pessoas acreditam que ao terem uma experiência nesse reino conseguiram atingir o que buscavam por encontrarem suas crenças lá personificadas. Mas se essas pessoas tivessem verdadeiramente experimentado uma iniciação, elas primeiramente ficariam muito desapontadas ao descobrir que aquilo que freqüentemente achavam ter atingido nada mais era que uma parte delas mesmas. Mesmo assim, se foram sinceras, a verdadeira beleza da iniciação desabrocharia e seu desapontamento daria lugar a um estado exaltado de compreensão ao saber que um véu foi removido e que a verdadeira hierarquia esotérica dos mestres está um pouco melhor compreendida.
O problema hoje em nosso mundo, no que diz respeito a assuntos esotéricos, é que a iniciação não está presente como um sistema real na advocacia da “Nova Era”. Somente a iniciação pode nos levar além das limitações e dos enganos físicos e psíquicos. Ao mesmo tempo, devemos nos conscientizar de que uma iniciação não é física ou psíquica, embora métodos físicos ou psíquicos sejam utilizados. Uma iniciação verdadeira é puramente espiritual. Ela ocorre a partir do interior de cada indivíduo como resultado de seu próprio preparo e presteza, sendo inspirada e acelerada por um ritual físico que às vezes se associa a uma experiência psíquica. Vejam as alegações de diferentes organizações e indivíduos. Quantos utilizam o processo iniciático? Não concordamos que, quando nossos olhos estão abertos, a maioria das alegações de espiritualidade são crenças pessoais formadas a partir do intelecto? Mesmo aquelas poucas organizações que declaram utilizar a técnica iniciática criam suas iniciações para adequá-las às suas idéias preconcebidas.
É imperativo que nos divorciemos dessas armadilhas. Caso contrário, seremos culpados de auxiliar as forças destrutivas à natureza. Existem hoje apenas algumas poucas estirpes de ordens iniciáticas prontamente disponíveis a todos os estudantes sinceros. Somente o verdadeiro iniciado pode encontrar qualquer uma delas. Mesmo assim, elas estão abertas somente a um número limitado. Há também outras escolas que servem à verdadeira hierarquia esotérica, mas sua técnica difere um pouco da linhagem iniciática; mesmo assim, somente um iniciado as compreenderá e elas também são muito poucas e reclusas.
Por que este estado de coisas existe? Duas Guerras Mundiais, tecnologia materialista, nacionalismo e intolerância religiosa têm todos sido fatores que contribuem para isso. Mesmo a partir dos “iluminados da Nova Era” encontramos uma atitude predominante, relativa à iniciação, que está enterrada na filosofia da Nova Era. Essa atitude pode ser melhor parafraseada nas palavras de um “místico” moderno ao promover determinada escola dizendo que, de acordo com os mestres, a era das ordens iniciáticas está ultrapassada, que sua técnica não mais se aplica ao mundo de hoje e que deve ser substituída por uma nova ordem e uma nova técnica que correspondem e vão ao encontro do estado já elevado de consciência atingido pela humanidade.
Tal declaração é o cúmulo da arrogância e revela a ignorância acerca da corrente iniciática. Fazer tal alegação em nome da hierarquia esotérica é, entre outras coisas, um absurdo. Os iniciados que partiram antes de nós, que transcenderam os planos conhecidos e que nos guiam através de seus ideais nunca poderiam fazer tais alegações, porque foi a técnica iniciática que os levou até onde hoje estão. Nicholas Roerich disse uma vez que era possível que um iniciado evoluísse além da escola de pensamento que pela primeira vez o introduziu aos mistérios. De fato, espera-se que isso venha a acontecer. Mas ele também declarou que o iniciado sempre se lembraria com carinho e reverência daquilo que o guiou no Caminho.
O que é, então, essa técnica iniciática que é nosso dever proteger? E o que ela ensina? Em um estágio elementar, a iniciação é simplesmente um começo, como assim subentende a derivação da palavra latina “initium”. A iniciação é o início de um novo estado ou condição abrindo-se para um novo caminho. Há três classes tradicionais de iniciação que consideraremos: (1) comum, (2) rara e (3) prejudicial.
O profano é considerado um prisioneiro cego das trevas que vagueia pelos diversos reinos do engano, ilusão e erro. Se o profano for sincero, por fim encontrará uma iniciação que realmente o coloca em uma nova condição livre das mentiras e preconceitos. Em uma palavra, essa pessoa se torna iluminada e é reconhecida como um iniciado, tornando-se, por meio disso, mais forte e mais poderoso. Um novo caminho é aberto ao iniciado e a Verdade Cósmica é revelada através do simbolismo, uma chave a ser utilizada para desvelar os mistérios ocultos ao mundo profano.
A conseqüência da iniciação é ao mesmo tempo uma possibilidade e um dever de utilizar a luz recém adquirida em nome da humanidade — uma possibilidade no sentido que o iniciado pode se recusar a cruzar o portal; e um dever, no sentido que, se o cruzar, o iniciado deve se tornar um foco de radiação da luz. O iniciado deve se livrar de todo egoísmo e interesses egocêntricos. Se esses grilhões forem quebrados, a emissão de luz é ao mesmo tempo amor, energia e poder.
A natureza desse poder é uma transmissão do iniciador para o iniciado por indução mental, o que cria uma nova condição mental ou percepção. O iniciador pode ser outra pessoa ou pode ser simplesmente a Natureza, mas o ato da iniciação cria um equilíbrio dentro do iniciado reconhecido como harmonia. Uma vez atingida a harmonia, o poder torna-se percebido e, por meio disso torna-se permanente. Aquilo que é feito não pode ser desfeito. O iniciado percebe que não pode nunca mais voltar para o mundo profano. Mas ao mesmo tempo, não há garantia de que o iniciado permanecerá no Caminho. É por isso que é extremamente importante que a ligação com o iniciador original seja mantida e que todas as viagens futuras sejam feitas de forma progressiva. Negar o iniciador original é negar o Trabalho. Desta forma, lembramo-nos das palavras de Roerich, como mencionado previamente.
A ligação ou a linhagem do iniciador ao iniciado é uma transmissão de poder através de uma cadeia ininterrupta de iniciados que são, essencialmente, veículos humanos da Luz. Geralmente, um ritual especial acompanha tal transmissão e seu propósito é o de desencadear uma corrente de assistência celestial causando a harmonização com forças espirituais que ajudam o iniciado a destruir, pelo fogo, suas qualidades profanas. Um verdadeiro ritual de iniciação em muito ultrapassa uma simples dramatização. Uma dramatização somente tocará as emoções e o intelecto. O ritual tocará a essência espiritual e trará à existência a assistência espiritual através de um despertamento.
Quando um verdadeiro ritual de iniciação ocorre, ele é acompanhado pela responsabilidade do iniciado em manter a transmissão do poder espiritual através da obrigação de irradiá-lo a partir do interior de seu ser. Há também a obrigação de cada iniciado de se certificar que a Luz seja perpetuada e transmitida às gerações sucessivas, assegurando assim a continuidade da técnica. No entanto, ainda é possível ao iniciado afastar-se da linhagem e utilizar o poder para fins egoístas. Se isso for feito neste estágio, não estamos lidando com um indivíduo que é simplesmente ignorante acerca da Luz, mas com alguém que conscientemente serve às Forças das Trevas.
O verdadeiro propósito desse tipo de iniciação é servir à humanidade para garantir que a Luz seja irradiada em meio às trevas. Podemos ver, de fato, que as obrigações e responsabilidades do iniciado são grandes e também percebemos que a importância de uma linhagem iniciática continuada e ininterrupta é de suma importância para que o poder da Luz cresça e transcenda as limitações do iniciado individual. O indivíduo pode dar as costas à Luz, mas a cadeia iniciática e a linhagem centenária de iniciados criam uma condição que supera o indivíduo, pois não pode ser destruída pelos fracassos de uma pessoa, seja ela quem for. Nenhuma pessoa isolada ou grupo pequeno de pessoas têm a força para desfazer o que foi feito. Isso se torna uma força e um poder da Luz que não pode ser desviado. Eis por que é tão absurdo ouvir a alegação que as ordens iniciáticas estão obsoletas e eis por que é tolice pensar que uma criação completamente moderna da “Nova Era” pode substituir um sistema que tem funcionado e prestado um grande serviço por incontáveis séculos.
O sistema da CR+C é o tipo de cadeia iniciática que acabamos de discutir. O sistema só pode ser obstruído caso a maioria dos iniciados se torne negligente quanto às suas obrigações e responsabilidades. Mesmo assim, bastaria somente um iniciado verdadeiro para reviver o Trabalho.
A segunda forma de iniciação é extremamente rara, e é talvez a fonte de todas as ordens iniciáticas, em que o recipiente da iniciação a recebe diretamente através de uma osmose espiritual, e não através de um iniciador humano. Indivíduos tais como Pitágoras, Raymond Lully e Louis Claude de Saint Martin são exemplos disso. A validade de suas iniciações pode ser provada através de certos sinais que representam certos segredos Cósmicos que são revelados por tais indivíduos através de suas obras ou das ordens que eles deram origem. A iniciação rara será coberta em maiores detalhes num artigo separado.
O terceiro tipo de iniciação que consideraremos é a iniciação prejudicial ou iniciação negativa. Há dois tipos delas: aquelas criadas pelas influências destrutivas de um ser humano que utiliza a técnica iniciática para atingir fins egoístas e, segundo, aquelas iniciações produzidas pelas ações da ignorância e do engano, às quais comumente nos referimos como Forças das Trevas. O iniciado das Forças das Trevas é aquele que se harmoniza com as criações astrais da cobiça e do ódio e desse modo nunca adentra os planos espirituais. São, na verdade, ilusões, mas ao mesmo tempo uma força que deve ser levada em consideração em nosso nível de manifestação.
A Luz Espiritual não conhece as trevas, mas para receber a Luz precisamos transcender as trevas e atingir o nível da Luz. Devemos, através da iniciação, deixar as trevas para trás através de nossos próprios esforços. Não podemos levar as trevas conosco ao nos aproximarmos da Luz. A Luz não virá a nós se permitirmos que as trevas estejam presentes. Eis por que os mestres não canalizam através de médiuns em nosso plano de existência.

domingo, 9 de setembro de 2018

O QUINTO PORTAL - OS OITO PORTAIS DO CAMINHO


Por Yoskhaz
No meio da tarde, depois de procurar por quase todo o mosteiro, fui encontrar o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, no refeitório. Ele se entretinha com um pedaço de bolo de aveia e uma caneca de café enquanto conversava com o cozinheiro. Ambos eram homens bem-humorados e cheios de histórias interessantes para contar. Quando me viu fez um aceno para eu me sentar com eles. Raimundo, um brasileiro natural do Ceará, tinha percorrido o mundo a bordo de um navio mercante até sossegar, há tempos, na cozinha do mosteiro, localizado nas montanhas dos Pirineus. Ele era muito querido por todos na Ordem, seja pela sua simpatia, seja pelos dotes culinários. Raimundo contava uma aventura vivida no Vietnã. De folga do serviço quando o navio atracou, procurou por uma igreja por sentir um grande desconforto na alma, o qual não conseguia identificar o motivo. Sem conhecer a cidade portuária, andou a esmo pelas ruas até se deparar com um templo budista. Como os portões estavam abertos, entrou. Subiu a escadaria e encontrou um grande salão. Estava vazio. O perfume dos incensos, uma música suave que se misturava ao som do silêncio, tornavam o lugar acolhedor. Sentou-se e rezou. Como vinha de uma família sem hábitos religiosos, nunca aprendera a rezar. Assim, rezou ao seu modo, conduzido pela pureza do coração. Como sentia uma vontade inexplicável de “conversar além das coisas do mundo”, perdeu-se nas horas. Quando terminou um monge budista que o observava se aproximou. O monge budista se declarou encantado com a aura clara de Raimundo. Disse que a pureza da sua prece tinha iluminado o templo e agradeceu por isto. O cozinheiro confessou estar se sentindo bem melhor do que quando ali entrara. Meteu a mão no bolso, tirou algum dinheiro e entregou ao monge budista. Disse que deveria ter como destino a manutenção do templo, pois achava importante que aquele lugar fosse conservado para que outras pessoas pudessem se beneficiar, assim como acontecera com ele. O monge budista, que nada pedira, arqueou os lábios em sorriso e acenou com a cabeça em agradecimento. Raimundo acrescentou que aquele dinheiro era também com a intenção de obter algum merecimento do Alto, pois quase nada entendia sobre esses assuntos. Neste instante, sem perder a serenidade, o monge budista lhe devolveu o dinheiro. Disse que não podia aceitar; que Raimundo não ficasse zangado nem o levasse a mal. Mas ali não era um mercado de trocas; era um templo. Um local de conexão com o sagrado que habita em todos nós. Explicou que a caridade era uma linda virtude, desde que isenta de qualquer interesse, seja material, ainda que espiritual. Argumentou que devolvia o dinheiro para o bem do próprio Raimundo, pois a caridade ligada a qualquer recompensa se torna um empecilho à jornada cósmica do benfeitor.
Interrompi para dizer que o monge budista tinha sido deselegante e rigoroso. O cozinheiro ponderou que, embora tivesse ficado desorientado, aquele fato o ajudou a entender bastante sobre a caridade, uma das vertentes da misericórdia; o perdão é a outra. Falou que a partir daquele fato pôde iniciar o entendimento de como se relacionar com Deus, o Universo, o Reino dos Céus, o Infinito, o Grande Mistério ou qualquer outro nome usado nas várias tradições místicas.
Olhei para o Velho a procura da sua opinião. Ele sorriu e explicou: “A misericórdia é uma virtude pouco entendida em suas variantes. Assim como o perdão, a caridade possui vários degraus. Entendê-los é primordial para se conhecer a misericórdia em toda a sua amplitude.”
“Muitos praticam a caridade como compensação espiritual aos seus maus feitos; nestes casos ela é vazia por absoluto. Em verdade, estão à procura de perdão por eventuais erros. Outro erro. Por se tratar de perdão, não há nada para se comprar nem para se vender. Metafisicamente a ideia de negociar o perdão é simplesmente absurda.”
“Outros praticam a caridade como tentativa de, em troca, obter favores materiais. Uma barganha ridícula. Algo como, ‘eu socorro aos necessitados e, em contrapartida, Deus me ajuda’. Muitos agem assim como se estivessem diante de um balcão de favores e interesses. A decepção será enorme.”
“Há os perdidos. São aqueles que negociam a caridade no ‘mercado futuro de ações’. Prometem que ajudarão a um orfanato caso acertem na loteria ou fiquem milionários em seus negócios. Ou seja, imaginam Deus como um menino ingênuo. Pedem muito e, se forem atendidos, colaborarão com uma parte. Apenas uma parte. Somente os tolos imaginam que algo assim possa se tornar um ato de caridade. Nunca serão levados a sério.”
“Existem os sombrios. Fazem a caridade por orgulho ou vaidade. Seja para se sentirem maiores diante dos outros, seja para serem admirados em sociedade. Sempre dão um jeito de divulgar ‘a boa ação’, não raro, se valendo de falsa humildade. Uma esmola que de jeito nenhum se caracterizará como caridade por sua desprezível motivação. Um ato rasteiro jamais se considerado uma virtude.”
“Não esqueçamos dos medrosos. Atendem aos necessitados por terem medo de serem castigados pelos Céus. Não fazem por amor, mas por temer a perda dos bens materiais que possuem em virtude de suposto ‘castigo divino’. Serão ignorados. Esqueça a ideia de castigo. Não existe virtude nem evolução pelo medo. Deus nos quer corajosos e conscientes do amor existente em cada uma das nossas escolhas.”
“Incautos todos, praticam a caridade na expectativa de iludir a si ou aos bons espíritos quanto aos verdadeiros sentimentos que animam o seu coração. Acreditam que a casca impedirá o caroço de se revelar. Enganam-se ao pensar que nas Terras Altas alguém se ilude com a aparência sem prestar atenção à essência.”
O Velho fez uma pausa para bebericar o café. Aproveitei para falar que, embora nunca tenha me ocorrido a desfaçatez de propor algum tipo de barganha através da caridade, todas as vezes que a pratiquei foi para ver a alegria do beneficiário ou com o intuito de me sentir melhor. O Velho me olhou, sorriu e elogiou: “Uma bela e nobre atitude!” O meu ego vibrou. Mas por pouco tempo, pois, em seguida, ele ponderou: “Se não fosse por algum desses motivos, de ver a alegria do outro ou de se sentir melhor, você teria feito a caridade?” Mesmo sem entender a profundidade da pergunta, confessei que não.
O bom monge argumentou: “Praticar o bem para se sentir melhor, embora tenha inegável valor, ainda nos deixa aquém do último degrau e mais amplo sentido da caridade. Quando fazemos isso incorremos em dois perigos. Um deles é, inconscientemente, na qualidade de benfeitor, se sentir em estágio acima do beneficiário pelo mero fato de o socorrer, como se o poder material significasse superioridade espiritual. São conhecidas as histórias de anjos maltrapilhos a esmolar para revelar o coração dos homens. O ato de ajudar para se sentir melhor, em análise profunda, representaria apenas um bom exercício para um ego ainda desalinhado à alma na procura pelo pedaço que lhe falta. Busca fora aquilo que adormece dentro.”
“É comum usar o socorro a alguém para completar algo que nos falta. Dentro de nós. ‘Dou amor para receber amor’. O vazio afetivo e a desordem emocional terminam por fazer que as pontas se troquem. O benfeitor, em verdade, é o beneficiário da caridade por ele praticada. Assim, o fim termina em si mesmo.”
“O outro perigo ocorre em ocasiões nas quais o benfeitor está desprovido do melhor entendimento quanto à caridade. São situações onde ocorrem algumas decepções. É comum o beneficiário não agradecer a ajuda recebida. Pelo contrário, se sente ainda mais miserável por não conseguir suprir as próprias necessidades, por viver em dependência. Não consegue entender o gesto de amor; a ajuda recebida dilata o incômodo pelas diferenças existentes; revolta-se diante das desigualdades e nega a lição de amor recebida. Quem não faz a caridade por amor, perdido na incompreensão, irá se frustrar nesse momento. Há casos em que o benfeitor se desanima diante das dificuldades inerentes à luz; amaldiçoa a humanidade. Esses é um dos motivos pelos quais a caridade, além de um gesto de amor incondicional, deve ser anônima.”
“Fazer pela alegria do outro deve ser um gesto de amor. Fazer por amor é como plantar flores para tornar mais bonita e agradável a estrada de desconhecidos caminhantes. Sem que nada se saiba sobre o semeador.”
“Que a alegria pela alegria do outro seja sempre um contentamento, jamais uma dependência. Lembre que a alegria está no âmago do ser. Compartilhar aquilo que temos de melhor nos faz sagrados. Sagrados com o outro; con-sagrados. No entanto, não esqueça que a semente para germinar precisa de solo fértil. Nem sempre o encontraremos; nem por isso devemos desistir ou lamentar. O amor reside em dar. Somente em dar; receber é efeito que não se deve esperar; não é típico do amor. O amor nada espera. Quando se usa a caridade para a satisfação própria, ainda que exista assistência, não há benevolência.”
“Outro equívoco comum é imaginar que a caridade apenas é possível através de contribuições financeiras. Ledo engano. A caridade emocional tem valor incomensuravelmente mais alto do que a ajuda material. Sem dúvida, o mundo precisa de melhor distribuição de renda para uma convivência mais humana. No entanto, a humanidade carece mais de abraços e compreensão do que necessita de cheques. Esta é maravilha da misericórdia que a torna acessível a todos. Ninguém é tão pobre que não possa dispor de um pouco de compaixão, paciência e carinho para alguém que esteja desamparado. Muitas vezes dentro da própria casa. Sim, a caridade afetiva se inicia em família. Antes de salvar o mundo o indivíduo deve apagar o incêndio que arde a sua casa.”
“A História nos conta que as pessoas que mudaram o destino do mundo, aquelas que sustentam espiritualmente o planeta, em sua maioria, nunca tiveram mais do que poucas moedas no bolso.”
Interrompi para falar que a caridade era muito complexa. O Velho concordou, em parte: “Complexa pela sua simplicidade.” Eu disse que não tinha entendido e quis saber qual seria o degrau mais alto da caridade. O monge foi didático: “No sermão proferido na montanha o Mestre nos orientou que a ‘mão esquerda não deve saber o que faz a direita.’ Esta lição traz em si vários ensinamentos.”
“Ele dizia, em superfície, que não devemos propagandear qualquer ajuda praticada. Isto seria como promover um baile para as sombras do orgulho e da vaidade. Outra razão é para o beneficiário, quando possível, não saber quem foi o benfeitor. Assim não haverá dívidas de qualquer espécie, obrigações de agradecimento nem sensação de desigualdade entre os envolvidos. Lembre que a caridade, acima de tudo, é um ato de amor. O amor apenas se completa na sua incondicionalidade, sem a necessidade de julgamentos, reconhecimento ou contraprestações. Caso contrário, é um amor ainda imaturo; ou mesmo, não é amor.”
Bebeu mais um gole de café e prosseguiu: “Em profundidade, quando o Mestre diz que ‘a mão esquerda não deve saber o que faz a direita’ alerta ao próprio benfeitor a não exaltar o feito nem mesmo para si. Afinal, caridade também não pode se tornar uma festa para o ego dançar, ainda que sozinho, longe dos olhares públicos. Há que se ter humildade e compaixão. A caridade é um gesto natural de amor praticado por uma alma plena. Faz-se a caridade porque se tem amor no coração. E amor existe para alicerçar os pilares do próprio templo, a sua consciência. A caridade deve ser como sementes lançadas ao vento para florir em terras desconhecidas. Pessoas que talvez nunca encontremos, lugares que talvez jamais voltaremos. Qualquer outro propósito se perderá por inadequação. O andarilho faz e caminha. Não olha para trás.”
“O físico alemão Albert Einstein dizia que ‘o mundo dos fatos nem sempre conduz ao mundo dos valores’. Ou seja, fazer o bem, por si só, não torna um homem um bom. Não basta a existência da fruta para se conhecer a árvore; nem todos os frutos são doces. Para tanto é preciso aprofundar à sua essência. Lá está o gosto e o mel. Pratica-se o bem por muitos motivos, nem todos virtuosos. O bom pratica o bem sem qualquer esforço ou interesse. O bom tem consciência de que fazer o bem não traz em si qualquer mérito; fazer o bem não lhe cansa; não causa tédio.  Trata-se de exercício indispensável a um ser que transborda em amor. Significa uma alma que já despertou em si a sabedoria sobre a serventia do amor.”
O Velho tinha razão. A caridade é ato de puro amor. Puro de subterfúgios, de motivações escusas e intenções inconfessáveis. É preciso viver o amor em si para praticar a caridade no mundo. Quando eu achei que o assunto tinha findado, fiz menção em me levantar para procurar um canto onde pudesse refletir aquelas palavras, o Raimundo comentou que mais profundo era o entendimento e a prática de outra vertente da misericórdia, o perdão. O Velho concordou: “O perdão é a caridade espiritual.”
Tornei a me acomodar na cadeira e a encher a minha xícara com café. Falei que o perdão não era uma virtude difícil de ser praticada. Raimundo teve uma troca marota de olhares com o Velho e me perguntou se eu já perdoara todas as pessoas que algum dia me magoaram. Respondi que sim. Já não desejava mal a elas nem alimentava qualquer ressentimento. Algumas eu ainda não me relacionava, pois, o erro tinha sido delas. Portanto, cabia, após se arrependerem, virem até a mim. Acrescentei que eu as receberia com boa vontade. Os dois tornaram a se olhar em cumplicidade de pensamentos. Eu tinha caído em uma armadilha muito comum, a ilusão do perdão.
O Velho explicou: “Assim como a caridade, o perdão tem alguns degraus de entendimento. Algumas mais brandas, outras mais severas, todas as mágoas são prisões espirituais. A mais cruel faz surgir o desejo de vingança como engano de superação quanto ao mal sofrido. É a masmorra criada pelo ápice do ódio em situações emocionais mal resolvidas. Vale ressaltar que a resolução do perdão não está no outro, mas em si mesmo. Não importa o que tenha acontecido, nada mais precisa acontecer para que brote o perdão.”
Colocou mais uma fatia de bolo no prato e continuou: “O perdão é sábio. Pois, se fico na dependência da boa vontade do outro para a solução do conflito, concedo a ele o poder sobre a minha vida. A cura do ressentimento, que tanta dor causa, possível apenas através do perdão, ficaria em suspenso por tempo indefinido até que o suposto detrator atinja a consciência de rever equívocos, pedir desculpas e reparar o mal. Isto pode demorar milênios e me deixaria aprisionado à cela da mágoa, aleijado de espírito por tanta dependência emocional.”
“‘Se pedir desculpas, eu perdoo’, justificam. Estes nada entendem sobre o perdão. O perdão para ser verdadeiro não exige qualquer condição. O perdão é um gesto de amor. Para os sábios o perdão é uma pista de decolagem para voos inimagináveis.”
“Pior, muita da raiva que se sente não surgiu por causa de um erro alheio. O mero fato de alguém não desejar o meu desejo pode se tornar uma mágoa quando estou desequilibrado. O mundo tem o direito de pensar e escolher diferente do que penso e escolho. Mas costumo esquecer disto. A não aceitação da liberdade alheia é a causa mais comum do tolhimento da própria liberdade. A incompreensão quanto as escolhas alheias, mesmo as legítimas, são fontes de muitos ressentimentos. As mágoas são as grades fechadas por um ego primitivo, selvagem e bestializado.”
“O entendimento e a prática do perdão como um ato de amor incondicional é a autorização concedida a si mesmo para ser livre, digno, feliz e vivem em paz. Perdoa-se para ser pleno.”
“O perdão não se trata apenas do ‘não querer mal’, mas é desejar que todos os envolvidos sejam envolvidos em luz. Inclusive você. Na luz existe amor. Na luz o mal não sobrevive.”
“Do contrário, se dependermos de qualquer atitude de outra pessoa para o perdão se completar, estacionaríamos na neutralidade da existência. Restaríamos estagnados. A vida exige movimento e virtude. O amor nos conduz para o polo positivo do universo. O perdão é o barco que nos permite atravessar até a outra margem. O perdão é uma das mais sagradas maneiras de amar.”
“Perdoe-se e peça perdão sempre que necessário; tente, se possível, reparar o equívoco praticado. A partir daí, questão encerrada; siga em frente.” Questionei se era tão simples.  O Velho anuiu: “Sim, em verdade, embora profundo, é bem simples. Se o outro não aceitar o perdão, seja o solicitado, seja o oferecido, será uma questão interna dele na qual não cabe mais nenhuma atitude ou interferência. Não se pode interferir nas escolhas alheias, no entanto não permita que elas lhe aprisionem.”
Raimundo interrompeu para dizer que todos os egos irredutíveis quanto ao perdão devem procurar um terapeuta para se tratar. O bom monge riu pelo modo incisivo do cozinheiro em se expressar, mas concordou com ele. Discordei. Insisti que a questão não era tão simples assim. O Velho manteve a posição: “Sim, é simples. Sofisticadamente simples. Contudo, apenas tenha a consciência de não banalizar o perdão. Livre-se da culpa que paralisa; aceite o compromisso com a transformação. Assuma a sincera responsabilidade perante a si mesmo de fazer diferente e melhor da próxima vez. Valorize o sentido e a intenção do gesto para não vulgarizar uma atitude tão bonita; aproveite o fato para crescer. Não se pede perdão na prática de um ato vazio de virtudes, com palavras que não tenham a devida carga de compromisso. Mova-se através de bons sentimentos e ideias nobres. Tampouco se perdoa sem tais princípios, pois seria mera ilusão. O perdão para ser verdadeiro precisa trazer em si várias virtudes que o constroem. Amor, humildade, simplicidade, compaixão, generosidade, delicadeza, sinceridade, honestidade e coragem, muita coragem. Apenas os fortes perdoam e pedem perdão.”
Calamo-nos por um tempo. Raimundo percebeu os meus pensamentos longínquos e disse que poucos se dão conta sobre a grandeza de viver a misericórdia em total amplitude. Concordei. O Velho aprofundou a conversa:  “Não à toa, a misericórdia é a quinta Bem-aventurança. Não sem motivo é o Quinto Portal do Caminho. Para tanto se faz necessário ter ultrapassado os quatro portais anteriores, apenas possível quando se traz em si muitas outras virtudes já sedimentadas na alma. A misericórdia é uma das mais sublimes maneiras de amar.  Também é uma das palavras mais lindas pela sua construção, que aliás traduz toda a luz contida nessa virtude. Misericórdia é a junção do antepositivo ‘miser’ com o termo latino ‘cordis’, que significam desventura e coração, respectivamente. Ou seja, misericórdia é o ato sagrado de oferecer amor como bálsamo ao sofrimento de alguém. Serve também em relação a si mesmo. Amar-se como terapia de cura é ato primordial para amar o mundo como indispensável método de expansão do ser.”
O Velho esvaziou a xícara de café e finalizou: “Paulo, o apóstolo do povo, tinha razão quando escreveu em sua carta mais famosa que ‘sem amor eu nada serei’. Amoré a palavra que sintetiza toda a evolução.”
Raimundo pediu licença, pois tinha o jantar para preparar. Em seguida, o Velho também se levantou. Iria ler na biblioteca do mosteiro. Fiquei vendo o bom monge se afastar com os seus passos lentos, porém firmes.
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Fonte: www.yoskhaz.com

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